Ensaio sobre a obra As Canções de Amor de Christophe Honoré
Não é de nossa competência explicar exatamente os sentimentos, visto que estes não são palpáveis, mas suas relações com a memória são cruciais para a compreensão, pois a importância atribuída a determinadas lembranças depende diretamente da carga sentimental que elas carregam.
O filme As canções de amor – titulo original em francês, Les Chansons d’amour – é sem duvidas cheio de cargas emocionais. A história trata de um casal – Ismael e Julie – que resolve convidar uma moça – Alice – para formarem um trio , um ménage-à-troi como dizem os franceses e os conflitos que isso trouxe, culminando na morte de uma das personagens – Julie.
As canções de amor é um musical inspirado no movimento da Chanson Française – movimento cultural que vem do período anterior a segunda guerra até meados dos anos 60, com grandes representantes conhecidíssimas como Edith Piaf, Frehél, Barbara (influência direta desta cantora), Marie Laforêt – mas com uma roupagem contemporânea. Feito com matérial pré-existente, composto por Alex Beaupain.
As músicas de As canções de amor são densas, mas ao mesmo tempo minimalistas, elas trazem a tona quase toda a carga sentimental do filme, servindo de diálogos , ou seja, como um bom musical, não se limita a somente ser a trilha sonora, escutá-la isoladamente já trás boa parte do sentimento presente no filme.
A rigor o filme é dividido em três momentos Le Depárt, L’Absence e Le Retour - A partida, A ausência e O regresso – mas é pertinente nos deter nas cenas que muito dizem sobre a linguagem, portanto, alguns recortes serão feitos dentro dessas divisões maiores cada um com seu enfoque especifico.
Le depárt
A partida.
Nessa primeira parte vejo a necessidade de pelo menos quatro recortes, nomeados alguns pelas músicas, mas antes uma breve explicação sobre o começo do filme. Se Walter Benjamin estivesse na Paris mostrada – Paris do século XXI – ele provavelmente enxergaria a morte da experiência em um maior grau. Paris é mostrada com todo seu movimento de uma cidade moderna e suas contradições.
A música de fundo transmite uma melancolia, a cidade se move, mas o mesmo tempo é gélida, cinza, talvez, sob algumas expectativas, até morta. Todos em freqüente movimento é o ritmo frenético do mundo moderno. Julie para na fila do cinema, mais uma vez ela se vê sozinha, então a história realmente começa.
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De bonnes raisons & inventaire
Boas Razões & Inventário
Nesse trecho é perceptível a crise das relações, apesar de todo um aparato tecnológico construído para aproximar, a cultura humana acaba criando barreiras. Ismael não pode se manter junto de Julie por conta de sua obrigações – emprego na edição de um jornal - essa crise de relações é uma ponte interessante para citar O mal estar na cultura de Freud. A cultura humana trás esse mal estar essa ausência de sentido nas ações cotidianas.
“Não me faltam boas razões para te amar” diz Ismael, mas a situação em que ele se pôs, mostra uma Julie irredutível, o costume os fez chegar num estagio de mal estar, o hábito tornou a vida a dois dele enfadonha.
É chegada a hora do inventário, “nada é secreto tudo se perde, o que nós somos na hora do inventário?” diz Julie, os hábitos e os anos passaram a pesar – “seus erros, meus juízos. As minhas criticas, os teus pecados _ E depois? _ Depois sonhamos com o antes” – É perceptível a crise, o desejo de passado é latente, sonhar com o antes é uma necessidade de continuar prosseguindo, é acreditar no passado como modelo ideal, é só enxergar no passado esse ideal.
As mascaras de Ismael
É impossível não enxergar como uma referência ao teatro grego esse momento, o jogo de mímicas não é uma simples brincadeira é uma representação dos tipos clássicos do teatro grego. A tristeza, a felicidade, o espanto e o desespero, são interpretados em um tom irônico por Ismael, enquanto a família de Julie se empenha em adivinhar que expressão ele representa.
É um almoço de família, provavelmente em um domingo, uma reunião de todos os entes familiares na mesa, a atuação de Ismael tem propósitos miméticos, de representar tais sentimentos que existem na realidade. É evidente o efeito catártico desse momento na diversão da família, principalmente o pai e a mãe de Julie.
Julie mais uma vez demonstra sua insatisfação, interpretando a mímica de Ismael como uma ofensa direta – “ele quer dizer que eu o levo da alegria ao desespero – e se retira da mesa. É demonstrado pela primeira vez um dos tipos de amor abordados pelo filme, o amor familiar.
O ambiente familiar se mostra como um refugio, que nos permite pensar na infantilização do adulto pela ausência dessa provável representação mimética na infância – o declínio da brincadeira na sociedade atual e as conseqüências disso para a formação de novos adultos - Jeanne, a irmã mais velha de Julie, nos é apresentada, é com ela que os conflitos de relacionamento são divididos e a nova experiência, o ménage a troi.
O papel de Alice
Apesar de descrita como um dos motivos da crise, Alice nos é apresentada como um elemento conciliador. Ismael e Julie se mostram novamente hostis um com o outro, discutindo no meio da rua.
Então Alice se mostra entre eles como um elemento de comunicação e entedimento entre os dois – “Eu sou a ponte sobre o riacho que vai de ti a ti, atravessem-me, que boa oportunidade, beijem-se sobre mim.”
E é através dessa “ponte” há um breve momento de conciliação e então seguem os três cantando pela noite para encontrar o destino – que no caso seria um show, do próprio Alex Beaupain.e um acontecimento drástico.
Delta Charlie Delta
Esta freqüência policial soa como um mal pressagio na história. Nunca estamos preparados para lidar com uma grande perda e quando ela vem o sentimento de dor parece infindável. Ao sair do evento Julie sofre um ataque cardíaco fulminante e devido a sua idade ela morre em pouquíssimo tempo.
A morte subida de Julie atinge a todos à sua maneira, Ismael começa a vagar perdido, a família se mostra extremamente abalada, principalmente Jeanne, e Alice também é atingida a sua maneira.
A morte é representada como um agente catalisador da história e é uma representação de como a vida humana é breve. Nietzsche dizia que somos pó perante ao universo e uma morte súbita vem como comprovação disso, a vida é um instante, nós seres humanos somos apenas isso, instantes.
Arrisco dizer que o maior conflito do filme é justamente esse, a memória presente do amor que morreu e como se lida com isso, os três personagens que destaquei cada um terá sua maneira de lidar com o evento, Ismael se movimentando sem rumo, Alice algumas horas com Ismael outras seguindo seu próprio curso e Jeanne condenada a imobilidade.
L’Absence
A ausencia
A segunda parte vem como uma mudança no rumo da história, o luto e a dor estão presentes em todo momento. E é também onde conhecemos um personagem que assumirá grande importância na trama:
Erwan, um jovem rapaz bretão, que nos é apresentado como irmão de um envolvimento de Alice após a morte de Julie. Erwan se encanta por Ismael e começa a tentar seguir o seu ritmo, enquanto Ismael se mantém repelindo qualquer demonstração de afeto vinda dele.
O novo papel de Alice
Como pessoa mais próxima de Ismael, Alice tem um papel fundamental no momento da dor - o apoio e o amor de uma amizade. Nos tempos de crise são os amigos que mais nos ajudam, o amor da amizade é representado até de maneira erótica, mas ainda assim não se trata de um romance.
O papel purificador da dor é assumido pelos abraços e carinhos trocados entre os dois no chão da redação do jornal, uma das cenas mais belas do filme, é necessário apenas calar, como diz a canção, apenas o afeto, este é também um elemento de catarse de purificação da alma.
Pelo sabor do gesto
Não é a primeira cena de Erwan, mas é sua primeira música. Ele adiciona um ar jovial a trama e é o contraponto para a fadiga dos personagens mais velhos. É um dos momentos mais sutis da obra “As-tu Déjà Aime?”- você já amou? - é uma canção-dialogo, onde Ismael representa o espírito cansado das decepções e tristezas da vida
Enquanto Erwan é o novo, aquele que não possui traumas ainda e canta com um tom sonhador em contraponto ao pessimismo do outro. É uma música sobre a durabilidade dos sentimentos, os amores que duram e nos deixam exaustos e os imaturos que trazem esforços inúteis.
É uma reflexão sobre como nos envolvemos, ou deixamos de nos envolver nos dias de hoje, os relacionamentos estão ficando escassos, nós preferimos descarregar nossos afetos nas coisas que nas pessoas, a pós-modernidade é a crise dos valores e dos sentimentos do homem.
O primeiro sinal de um provável envolvimento entre os dois, Ismael apesar de ainda negar o afeto do jovem o procurou e de certa forma passa a apreciar a sua companhia, mesmo que tenha sido apenas para fugir das lembranças e Erwan mostra seu interesse e com seu jeito jovial e sonhador.
A marcha sem rumo de Ismael
O luto da dor, nos leva a cometer atos impensados, não se raciocina bem com um trauma latente e Ismael segue seu movimento na história, a contraponto de tudo ele mantém-se em constante movimento. É uma marca sem rumo, sem perspectiva, Ismael segue e se entrega aos entorpecentes – álcool – e se relaciona sexualmente com uma desconhecida.
Essa maneira de lidar com a dor é um tanto violenta e tem efeito curto, o prazer momentâneo não finda a dor só adiciona mais confusão, uma postura hedonista nesses momentos não resolve, os excessos são prejudiciais, principalmente para alguém que é cobrado diariamente por trabalho ou estudos.
As memórias se mantêm constantes e as comparações são inevitáveis, Ismael enxerga Julie em todas as partes, sua imagem aparece e se afasta dele sem que ele consiga alcançá-la, ele está perdido, ele se sente perdido, então marcha sem rumo pela sua própria história.
Le Retour – O regresso
Ma memoire Sale - Minha memória suja
Erwan mantém a insistência com Ismael, que acaba cedendo ao espírito jovem, “Ma Memoire Sale” é o regresso do amor romântico no filme. Erwan assume o papel de limpar a sujeira dentro da memória de Ismael, que faz a súplica -“lava, lava” - por que é incapaz de realizar-la sozinho – “Eu tentei, eu tentei, mas tenho o coração seco e inchado.”
É só nele que ela vive e é necessário que ela morra uma segunda morte. Chegou o tempo de esquecer. Nietzsche em uma de suas obras faz um paralelo com os animais, os animais são felizes por que não têm memória, portanto, o esquecimento é necessário para chegar a felicidade.
Talvez seja em parte necessário, quando se passa por um trauma muito grande as pessoas tentam fazer o máximo para nem lembrar, segundo Jeane Maria Gagnebin, as vezes até por receio do que as pessoas a volta vão pensar.
A relação lembrar e esquecer é importantíssima para a história, por que nós temos a obrigação de lembrar para esquecer, ou seja, lembrar para que não aconteçam eventos de horror como o holocausto, e no caso de um relacionamento afetivo a não repetição dos mesmos erros. Lavar a memória talvez não seja esquecer, lavar a memória pode ser simplesmente torná-la suportável e seguir adiante.
A imobilidade de Jeanne
A irmã mais velha de Julie, parece ser a única personagem condenada a imobilidade, Ela tenta se apoiar em Ismael, mas ele está mais preocupado em seguir seu ritmo de movimento. Alice segue ao lado de Ismael, mas depois procura seu próprio caminho, só Jeanne que permanece presa a memória de Julie.
Portanto a única saída que ela enxerga é o refugio em um passado mais recuado, a infância dela e de sua irmã. Jeanne procura consolo no “Parc de la Pépinière”. Jeanne Marie Gagnebin no livro “Lembrar escrever esquecer” tem um ensaio que nos permite refletir sobre essas memórias de infância. “O rumor das distancias atravessadas” é construído usando como base a obra de Proust, “Em busca do tempo perdido”.
Nesse ensaio Gagnebin disserta sobre a memória involuntária e sua riqueza – que na obra de Proust é representada por um pequeno biscoito chamado de Madeleine, tomado com chá em um fim de tarde – em contraponto com a pobreza de uma rememoração intencional.
Jeanne tem sua rememoração espontânea através do “Parc de la Pépinière”, que ela e sua irmã freqüentavam, mas apesar da lembrança sincera ela se mantém no sentimento de falta da irmã – “Tudo lá estará, tudo lá estará, Exceto você” – portanto, condenada a imobilidade e a frequente rememoração da perda.
A visita tardia
Após discutir com Jeanne, Ismael vaga sem rumo mais uma vez e decide visitar o tumulo de Julie. Nesse momento a própria Julie canta numa espécie de aparição fantasmagórica . “Por que vens tão tarde?”
De fato essa visita tardia de Ismael, contraria seu movimento, mas ela é como uma cicatrização de uma ferida. É como a cicatriz de Ulisses da Odisséia, citado por Gagnebin, a cicatriz vai marcar o evento na memória de Ismael, é um não esquecer, mas sim um se acostumar com a dor até restar apenas uma cicatriz.
Alegoricamente amor
Após vagar sem rumo, novamente, Ismael volta para Erwan, mas apenas procurando o conforto de um corpo e sem intenções amorosas. Porém Erwan está disposto apenas a se doar com a condição de dizer "te amo", é a ultima cena do filme e a consolidação do romance dos dois, a música termina deixando no ar uma frase, “Ame-me menos, mas me ame por mais tempo”.
Essa singela frase nos faz pensar na utilidade prática do romance nos dias de hoje. Recorrendo a Walter Benjamin, sua alegoria na modernidade, nos trás uma discussão sobre a reativação da alegoria nos tempos modernos e a decadência dos signos, o amor pode ser visto como um signo de uma elite, mas talvez hoje seja um pouco diferente.
Não querendo definir os sentimentos, mas não é pertinente enxergar o amor como um signo dominante, o amor talvez esteja mais na categoria de alegoria, os vários tipos de amor e afeto hoje são sentimentos alegóricos, mas como o foco da obra é o amor, pode-se concluir que, o amor é uma alegoria que inventamos para transgredir o “ditador-socidade”. Esta é a utilidade prática do romance como ente cultural, um dos fatores responsáveis para livrar o homem da neurose causada por esse mundo moderno. É um alicerce para sobreviver as pancadas e cobranças da sociedade